Em 2012, fui a Portugal e, como de hábito, encontrei-me com alguns parentes de minha esposa que, pela afinidade, adotei como meus. Dessa vez, encontrei-me com o Fernando Inácio, que mora na cidade do Porto e trabalha numa cidade próxima, chamada Santa Maria da Feira, onde se passou esta história.
Fomos almoçar no restaurante Roda da Lage, um espaço com duas salas agradavelmente decoradas, com madeiras e azulejos tradicionais, além de diversos artefatos rústicos e das rodas de madeira de vários tamanhos e feitios que dão o nome à casa. A cozinha é a tradicional portuguesa: farta e saborosa. Iniciamos com alguns petiscos tradicionais, um bom presunto cru, uma seleção de queijos regionais, uma punheta de bacalhau (cujo nome vem da maneira como a receita é preparada, pois usa-se os dois punhos para desfiar o bacalhau) e um polvo a vinagrete. Como prato principal, comemos uma pata de cabrito assada com legumes (em Portugal, principalmente no norte, quando se fala em cabrito, na verdade estamos falando do nosso conhecido cordeiro mamão, portanto, peça sem medo que é uma delícia). Como era um almoço rápido, optamos por uma garrafa de vinho tinto da casa, apesar da carta de vinhos bastante completa e abrangente.
Antes de pedirmos a sobremesa é que a história começa. O proprietário da casa, por acaso Manoel, se aproxima da nossa mesa e pergunta como estava a refeição. Depois dos elogios, passamos a conversar sobre vinhos, pois o mesmo é, também, proprietário da Garrafeira da Laje (loja de vinhos). Identificando nosso interesse, começou a nos contar sobre uma adega que ele tinha adquirido há pouco tempo. Portugal, nessa época, passava por uma grave crise econômica e o dinheiro era escasso, por isso algumas pessoas que tinham adegas familiares antigas começaram a vendê-las para obter uma renda extra. O Manoel nos contou que, após idas e vindas, acabou adquirindo um lote de 400 garrafas de diversas idades.
Como sou um apreciador de vinhos evoluídos (com bastante idade), perguntei a ele se alguma dessas garrafas iria ser colocada a disposição dos clientes na sua garrafeira. Ele prontamente respondeu que não, pois teria dificuldade em justificar a origem das garrafas e garantir sua qualidade, mas também comentou que gostaria de compartilhar algumas garrafas com seus amigos e clientes que apreciassem esse estilo de vinho. Uma pontinha de esperança atravessou meus pensamentos: será que eu poderia me incluir nessas categorias?
Claro que não! Porém, o Fernando Inácio, frequentador assíduo do restaurante estava incluído, então o Manoel nos perguntou o que comeríamos de sobremesa, pois ele havia aberto dois vinhos do Porto antigos da adega comentada. Não hesitamos um momento e pedimos que ele sugerisse a sobremesa que melhor combinasse com os vinhos. Ele sugeriu rabanadas e foi buscar os vinhos. Imaginamos que dois pequenos cálices nos seriam apresentados para que os provássemos, porém vieram dois decanteres com as duas garrafas em questão. Como as garrafas estavam sem rótulo e sem identificação possível, o Manoel falou que, pelo formato e estilo das garrafas, eram vinhos do Porto do final do século XIX ou início do século XX, então estávamos falando de um vinho provavelmente engarrafado antes da Primeira Guerra Mundial.
Foi uma experiência extraordinária. Os vinhos estavam límpidos, com uma cor âmbar clara, muito parecida com um vinho branco de sobremesa, porém os aromas ainda eram vivos, com muita fruta passa, mel, especiarias, além de couro e tabaco, com uma intensidade incrível e muito presentes. O Manoel comentou que um deles tinha um pequeno defeito no olfato, porém concluímos que era algum aroma volátil que desapareceu com a decantação. Na boca, foi outra explosão de sabores, com uma persistência que nos acompanhou pelo resto do dia, confirmando a longevidade e potência de um bom vinho do Porto de guarda. Acabamos estendendo o papo e finalizando aquelas duas garrafas centenárias. Obrigado, Manoel e Fernando Inácio, por esta experiência única e inesquecível.
Uma dica para quem gostaria de apreciar um vinho do Porto com mais idade: a Taylor's está completando 325 anos e lançou duas edições comemorativas - uma com a réplica da primeira garrafa de vinho do Porto da Taylor's e outra denominada Very Old Single Harvest Port (vinho do Porto muito antigo de safra única) das safras 1966 e 1967, coincidentemente os anos que eu e minha esposa nascemos, por isso elas fazem parte da minha adega e as degustarei em uma ocasião especial.
Espero que todos possam um dia ter uma experiência como essa e até a nossa próxima orgia enogastronômica.